Por Rafael Zago
A história do direito remonta aos primórdios da humanidade, com a finalidade de regular as relações entre membros de uma comunidade e estabelecer normas para a convivência pacífica e harmônica em um ambiente comum. Quando inseridos num universo regulado, os indivíduos se submetem aos instrumentos normativos impostos pela comunidade, conhecido no ramo do direito como ordenamento jurídico, para que o direito de um indivíduo não ultrapasse ou sobressaia o de outro.
Assim como existem territórios geográficos conhecidos como “terra nullius” ou “terra de ninguém”, que são espaços territoriais não reivindicados por nenhum país ou povo, e por este motivo não são regulados, não possuindo organização, ordenamento ou governo, com o advento da tecnologia e da internet, o ambiente virtual tem sido pauta de emergente discussão acerca de sua regulamentação, cujo objetivo visa ampliar a segurança jurídica de seu uso e garantir o bem-estar social.
Se por um lado existam os que defendam a não regulamentação com a justificativa de que a proposta governamental seria tolher o usuário de usufruir livremente do espaço virtual, protegendo supostamente a liberdade de expressão das redes sociais, por outro lado há os que defendam sua regulamentação justamente para garantir maior segurança e coibir o uso desregrado e criminoso do ambiente virtual, tendo em vista que grande parte dos tipos penais sofreu mutações nos últimos anos para se adequar à internet, dificultando cada vez mais a identificação da autoria e materialidade delitiva.
Inicialmente, é preciso entender que o ambiente virtual não se resume exclusivamente às redes sociais. Fica nítido que a defesa da não regulamentação do ambiente virtual com a única intenção de garantir a livre manifestação do pensamento ignora a existência, no ordenamento jurídico brasileiro, da cláusula pétrea prevista no bojo constitucional que garante a livre expressão, vedando seu anonimato. Com isso, qualquer nova norma que intentasse contra este dispositivo seria considerada inconstitucional, e seus efeitos restringidos, caso contrário, seria passível de se propor Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).
Seria, portanto, impossível qualquer legislação regulamentadora do uso do ambiente virtual transgredir os direitos individuais pétreos garantidos pela Carta Magna, pois o próprio ordenamento jurídico brasileiro já prevê mecanismos inibidores. Qualquer futura legislação vislumbrando a regulamentação do ambiente virtual seria obrigada a atender aos preceitos constitucionais, aos princípios basilares do direito brasileiro, transportando ao ambiente virtual as mesmas garantias e obrigações, direitos e deveres, que qualquer brasileiro já se submete enquanto no ambiente territorial físico, como as leis vigentes, sua proteção e sanções.
Surge então o dilema: qual o receio de se regulamentar a internet? Qual o objetivo em afastar do ambiente virtual as mesmas responsabilidades e sanções, garantias e controles, que o indivíduo já se submete na vida particular? Por que o ambiente virtual não pode ser sujeito à aplicação da lei tal qual no mundo real? E, mais importante ainda, questionar-se a quem essa liberdade ilimitada e irrestrita realmente interessa?
Ao traficante seria vantajosa a inexistência da Lei nº 11.343/2006, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, tanto quanto seria vantagem para o agressor de mulheres a inexistência da Lei nº 11.340/2006 que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Assim como, a qualquer um que deseja cometer um dos tipos penais do rol dos crimes comuns vigentes no Decreto-Lei 2.848/1940, seria o ideal que o Código Penal não existisse.
Mesmo que, em casos específicos, a interpretação de qualquer lei pode surtir efeitos questionáveis, assim como toda matéria de direito, já que trata-se de uma ciência humana que se utiliza da hermenêutica para sua aplicação, passível de conflitos jurídicos que podem ser razoavelmente sanados na esfera jurisdicional, indivíduos que não traficam ou não pretendem traficar drogas não questionam a regulamentação e os efeitos da legislação antidrogas, assim como os não agressores de mulheres não questionam a existência da Lei “Maria da Penha” como mecanismo de proteção à mulher.
Não há como perceber de outra maneira a defesa da não regulamentação do ambiente virtual senão para manutenção e perpetuação dos abusos e delitos já bastante frequentes no mundo digital, além de dificultar o acesso de órgãos públicos e da jurisdição, por exemplo, aos dados cadastrais e rastreio do usuário infrator, garantindo assim a sua impunidade. Até porque, no mundo real, não existe liberdade absoluta, já que qualquer liberdade garantida pela legislação vigente culmina na infração dos dispositivos legais. Logo, não faz sentido defender que, no ambiente virtual, o tratamento seja diverso do mundo real. Num ambiente sem leis, como numa terra sem governo, se não há uma regra imposta, qualquer um dita as regras.
Importante lembrar que, no mundo real, mesmo com um ordenamento jurídico robusto, ninguém é tolhido de suas garantias e liberdades individuais, desde que respeitando seus limites e não transgredindo a lei, conforme reza o princípio da legalidade pacificado no art. 5º, inciso II da Constituição Federal de 1988 que diz “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Eis o que diferencia, por exemplo, o particular da Administração Pública, já que o ente público só atua mediante determinação ou autorização legal, enquanto o particular pode fazer tudo, exceto o que é proibido em lei.
Neste sentido, qual a dificuldade ou conflito em se estabelecer os mesmos paradigmas para o ambiente virtual? Até porque limitar não é sinônimo de proibir, e desde que o ser humano se consolidou como ser social e político, para se viver em harmonia foi necessário impor limites.
Da mesma forma, por exemplo, existem os críticos da legislação trabalhista vigente, que imputam à Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que tão somente estipula garantias mínimas para o trabalhador brasileiro, os atuais problemas do mercado empresarial e o alto índice de desemprego. Fica a pergunta: se a legislação trabalhista brasileira impõe o salário mínimo, limitando o empregador a não pagar abaixo do valor mínimo estabelecido, ficando livre para pagar além do mínimo, qual o sentido de se opor à referida legislação? Neste caso, só há uma resposta: a intenção de pagar abaixo do mínimo.
Portanto, a conclusão mais próxima que se pode ter de qualquer discurso anti-regulamentação da internet ou das redes sociais é a intenção de se transgredir os possíveis limites impostos, especialmente quando se trata do discurso quanto a inviolabilidade absoluta da liberdade de expressão ou manifestação do pensamento nas redes sociais, que muitas das vezes é defendida não para garantir o pleno exercício deste direito, mas com intuito de endossar e ampliar a divulgação em massa de fakenews, opiniões parciais, discursos de ódio e preconceito, fatos distorcidos e tendenciosos, manipulando a opinião pública e prejudicando o ambiente democrático.
Com toda certeza o avanço de uma regulamentação robusta das redes auxiliaria na prevenção de diversas práticas criminosas que, atualmente, inundam a internet e, em especial, as redes sociais, sendo uma das mais emergentes a pedofilia relacionada à superexposição e adultização infantil, tema viral que polemizou no meio jurídico após o influenciador e Youtuber Felipe Bressanim Pereira, o “Felca”, ter publicado um vídeo denunciando o também influenciador Hytalo Santos, preso desde o dia 15 de agosto por explorar a imagem sexualizada de menores nas redes sociais e plataformas digitais.

Felipe Bressanim Pereira, o “Felca”
Como resposta à crescente exploração de menores no ambiente virtual, o Governo Federal promulgou a Lei nº 15.211/2025, que ficou conhecida como Lei “Felca”, em homenagem ao referido influenciador, ou ECA Digital. Defender o oposto disso é favorecer a pedofilia e a exploração de menores na internet.
O ambiente virtual necessita urgentemente de maior proteção normativa, assim como proteção de dados, e nada disso será possível sem a sua regulamentação. Aos que temem o prejuízo às suas liberdades virtuais, fica o consolo: as normas são isonômicas, logo, se aplicarão a todos indistintamente. Se o indivíduo já possui uma conduta ilibada e uma vida escorreita no mundo real, e no ambiente virtual mantém o mesmo comportamento, não há com o que se preocupar. Pedir a não regulamentação do ambiente virtual é pedir para ser vítima; é entregar-se à vulnerabilidade. É o mesmo que pedir o fim da polícia, dos órgãos fiscalizadores, do alcance da jurisdição. A regulamentação, dentro e fora da internet, tem o único compromisso de proteger seus direitos e garantir um ambiente virtual seguro, promovendo o bem estar social e asseverar que ninguém estará acima da lei.
Como dizia meu velho pai sobre qualquer lugar: “mais vale ter regra e punição para quem transgredi-la, do que não ter regra alguma”.