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Quebra de decoro ou crime de responsabilidade – quem está certo: Prefeita Samanta ou Vereador Tody?

Por Rafael Zago

 

É sabido que o ordenamento jurídico nacional garante aos membros de seus poderes republicanos – Legislativo, Executivo e Judiciário – alguns instrumentos jurídicos que poderíamos insinuar “privilégios”, já que concedem tratamento diferente dos demais cidadãos sujeitos à aplicação isonômica da lei, como é o caso da imunidade parlamentar. A imunidade parlamentar é um instrumento relacionado exclusivamente ao “parlamento”, ou seja, ao Poder Legislativo. Sabemos, inclusive, que existe distinção da imunidade parlamentar entre as esferas de poder, como por exemplo, quando se trata do Legislativo Federal, Estadual e Municipal, já que deputados e senadores possuem uma modalidade de imunidade parlamentar mais ampla que a do vereador.

 

 

 

Num primeiro momento, poderíamos supor que tais prerrogativas colidem com o disposto no caput do art. 5º da Constituição Federal de 1988 onde rege que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Porém, basta um estudo mais aprofundado do assunto para entender que não há qualquer distinção de valores no momento da aplicação da lei quando os indivíduos estão ocupando o mesmo lugar no momento da incidência legal. Em palavras mais “simples”, isso significa que a lei trata “igual os iguais” e “diferente os diferentes”, motivo pelo qual só serão obrigados a pagar IPTU todos os que possuírem um bem imóvel urbano, só serão presos por furto todos aqueles que cometerem furto e forem condenados por tais fatos, assim como só gozarão das prerrogativas legislativas todos os que compuserem o poder legislativo. Não haverá distinção de tratamento entre os indivíduos que estiverem na mesma qualidade, nas mesmas condições, os quais gozarão dos mesmos direitos ou sofrerão as mesmas sanções.

 

 

 

Dito isso, o próximo passo é entender o que seria a tal da Imunidade Parlamentar. A imunidade parlamentar é basicamente uma prerrogativa que defende a liberdade do legislador para garantir o pleno exercício de seu mandato, sem interferências ou arbitrariedades por parte do Estado, cujo início se dá desde a diplomação do cidadão eleito. Importante lembrar que essa garantia é relacionada ao cargo, ou seja, é um direito irrenunciável do cidadão investido na função parlamentar, mas não é um direito subjetivo. Este instituto passou a vigorar no Brasil na vigência da atual Constituição, com objetivo de garantir a autonomia e independência dos poderes e, em especial, do Poder Legislativo.

 

 

A imunidade parlamentar possui diversos aspectos, sendo possível ser 1) formal ou 2) material, 3) relativa ou 4) absoluta.

 

 

A imunidade parlamentar formal (1) trata das formalidades processuais relacionadas aos parlamentares no que tange as possibilidades de serem processados ou presos durante o exercício do mandato, desde a diplomação, e o assunto pode ser estudado mais profundamente a partir da leitura do art. 53, § 3º da Constituição Federal. Porém, como o objetivo não está em estudar cada um dos aspectos da imunidade parlamentar, mas entender um caso concreto ocorrido no município de Birigui/SP, não aprofundaremos neste tema, bastando para tanto entender que existe tal prerrogativa prevista na CF/88 e que esta prerrogativa, de natureza formal, é exclusividade dos parlamentares da esfera federal (deputados e senadores), não abrangendo o legislativo municipal (vereadores), o que significa que vereadores podem ser processados e presos durante o exercício de seus mandatos.

 

 

 

Já a imunidade parlamentar material (2) trata de preservar ao legislador o direito de exprimir opiniões, palavras e voto, quando no exercício da função e sobre a função, in officio ou propter officium, sem que sejam processados civil ou penalmente. Além de garantir aos parlamentares deputados e senadores no seu art. 53, a Carta Magna também estendeu aos vereadores a mesma inviolabilidade, quando trouxe em seu bojo, conforme art. 29, inciso VIII, o preceito de “inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município”, esclarecendo que, além de garantir somente a imunidade material ao vereador, ela está restrita ao município onde ele exerce a sua função.

 

 

Tratando-se de imunidade parlamentar relativa (3) ou absoluta (4), a discussão se dá em torno do lugar onde é proferida a opinião, palavra ou voto do legislador. Se o intento é garantir imunidade parlamentar fora da Casa Legislativa, essa imunidade é relativa, o que significa que a fala do legislador precisa ter conexão com o exercício de seu mandato, caso contrário, poderá ser sancionado civil ou criminalmente pelas suas palavras, opiniões ou atos, que deverão ser criteriosamente analisados para aplicação da lei. Já se tratando de opinião, palavra ou voto falado dentro da Casa Legislativa, em especial na tribuna, a imunidade parlamentar é absoluta, ou seja, as manifestações proferidas na tribuna da Casa Legislativa são protegidas de inviolabilidade material absoluta, independentemente de vinculo com o exercício do mandato. Esta matéria é tratada em diversas jurisprudências eleitorais e, dentre elas, apresento algumas, precedidas pelo acórdão do Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral nº 15271-71.2010.6.26.0000 que tem como Min. Relator Carlos Meira:

 

Eleições 2020. Conduta Vedada Discurso. Vereadores. Tribuna da câmara municipal. Imunidade parlamentar material. Art. 29, VIII, da CF/88. […]” NE: Trecho do voto do relator: “[…] os discursos impugnados foram realizados da tribuna da Câmara Municipal […] quando os representados encontravam-se no pleno desempenho de seus mandatos eletivos. Assim, conclui-se que os representados estavam sob o manto da imunidade parlamentar material absoluta do art. 29, VIII, da CF/88 e não podem ser punidos na seara eleitoral por essa manifestação. […] Ressalte-se que a transmissão televisiva do evento não afasta a inviolabilidade garantida aos representados, pois a reprodução das declarações externadas na Câmara Municipal constitui desdobramento natural do exercício das funções parlamentares. […]. (Ac. de 6.6.2013 no AgR-REspe nº 1527171, rel. Min. Castro Meira.)

 

“I – A incidência do Direito Penal deve observar seu caráter subsidiário, de ultima ratio. Nesse sentido, ofensas menores e que não estejam abarcadas pelo animus injuriandi não são reputadas crime. II – A reação do querelado ocorreu quando sua atuação política estava sendo questionada. Incide, por isso, a inviolabilidade a que alude o caput do art. 53 da Constituição Federal. III – A imunidade material em questão está amparada em jurisprudência sólida desta Corte, como forma de tutela à própria independência do parlamentar, que deve exercer seu mandato com autonomia, destemor, liberdade e transparência, a fim de bem proteger o interesse público. IV – Eventual excesso praticado pelo parlamentar deve ser apreciado pela respectiva Casa Legislativa, que é o ente mais abalizado para apreciar se a postura do querelado foi compatível com o decoro parlamentar ou se, ao contrário, configurou abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional, nos termos do art. 55, § 1º, da Constituição. V – Queixa-Crime rejeitada” (Pet 6587/DF, j. 01/08/2017).

 

“1. No presente caso, havendo sido evidenciada a relação entre o fato em tese ofensivo e a atividade do parlamentar, bem como tendo as declarações sido feitas nos limites da circunscrição do Município, o recorrente está abrangido pelo campo de incidência da imunidade parlamentar” (ARE 1.103.498 AgR/MS, j. 05/10/2018).

 

“Somente para os pronunciamentos feitos no interior das Casas Legislativas não cabe indagar sobre o conteúdo das ofensas ou a conexão com o mandato, dado que acobertadas com o manto da inviolabilidade. Em tal seara, caberá à própria Casa a que pertencer o parlamentar coibir eventuais excessos no desempenho dessa prerrogativa”. (STF: Inq 1.958)

 

“Imunidade parlamentar material: ofensa irrogada em plenário, independente de conexão com o mandato, elide a responsabilidade civil por dano moral. (STFRE 463.671AgR)

 

 

Observadas as jurisprudências supracitadas, fica nítido que já é pacificado o entendimento do judiciário nacional de que as manifestações de opiniões, palavras e votos de vereadores, no âmbito do município e, em especial, dentro da Casa Legislativa, manifestadas na tribuna, gozam de imunidade parlamentar material absoluta, independente inclusive de qualquer nexo com o exercício do mandato.

 

 

Assim sendo, analisando o caso concreto ocorrido onde a Prefeita Municipal Samanta Borini (PSD) apresenta uma representação junto ao Poder Legislativo Municipal em desfavor do vereador Cleverson José de Souza, conhecido como “Tody da Unidiesel” (Avante) por falas proferidas pelo parlamentar na tribuna no último dia 16 de setembro deste ano, onde o vereador teria dito, entre os trechos destacados na denúncia, “eu não vou dizer aqui se é ato de corrupção, eu não vou dizer aqui se é algum esquema, mas eu me preocupo…”, “isso chama má gestão. Isso chama desrespeito com o dinheiro público.” e “tudo que está vindo para essa cidade é esquema, é meio ilícito.”, onde, segundo a representação da Chefe do Executivo Municipal, tais declarações extrapolariam a crítica política legítima e configurariam abuso das prerrogativas do mandato, conforme o art. 357 do Regimento Interno da Câmara, que considera incompatível com o decoro parlamentar o uso indevido do cargo, não seria sequer preciso fazer a leitura do referido artigo regimental para se concluir que as falas do vereador se enquadram legitimamente em seu direito irrenunciável de imunidade parlamentar material absoluta, visto que as falas, além de terem sido pronunciadas dentro da Casa Legislativa, manifestadas na tribuna, no âmbito do município, são diretamente vinculadas com o exercício do mandato, relacionadas à função legislativa, não configurando uso indevido do cargo. Muito pelo contrário, justamente por ocupar o cargo de vereador e gozar de imunidade parlamentar material absoluta, poderia ocupar a tribuna com falas desta natureza, diferente de qualquer outro cidadão comum ou mesmo da própria Prefeita, que não poderia se utilizar do instituto da imunidade parlamentar já que não compõe o Parlamento.

 

 

Ainda que sanada qualquer dúvida neste quesito, vejamos, contudo, o que diz o art. 357 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Birigui/SP:

 

Art. 357.  O Vereador que descumprir os deveres inerentes a seu mandato ou praticar ato que afete a sua dignidade estará sujeito ao processo e às medidas disciplinares previstas neste Regimento e no Código de Ética e Decoro Parlamentar, o qual poderá definir outras infrações e penalidades, além das seguintes: I –  censura; II –  perda temporária do exercício do mandato, não excedente a 30 dias; III –  perda do mandato. § 1º  Considera-se atentatório ao decoro parlamentar usar, em discurso ou proposição, expressões que contenham incitamento à prática de crime. § 2º  É incompatível com o decoro parlamentar: I –  o abuso das prerrogativas inerentes ao mandato; II –  a percepção de vantagens indevidas; III –  a prática de irregularidades no desempenho do mandato ou de encargos dele decorrentes. (Grifo nosso)

 

Poderíamos ilustrar um suposto excesso ou abuso das prerrogativas inerentes ao mandato com a seguinte demonstração alegórica: suponhamos que um vereador use a tribuna da Câmara Legislativa apenas e tão somente para proferir insultos ao Prefeito de sua cidade, dizendo “o atual Prefeito é um vagabundo, pilantra e ladrão” e encerrasse sua manifestação nesse instante. Neste caso, ainda que o vereador goze da imunidade parlamentar material absoluta, há de se convir que não houve qualquer ligação entre as ofensas proferidas com o exercício do mandato, sendo as ofensas avulsas e desconexas com a atividade parlamentar. Nesse caso, seria possível o entendimento de que há abuso da prerrogativa da imunidade, pois o vereador se utilizou da prerrogativa para ofender o Prefeito sem qualquer cunho legislativo. Diferente, no entanto, se o vereador estivesse discursando sobre a inércia do chefe do Executivo Municipal, e durante sua fala dissesse que “por conta da demora em atender a nossa demanda, a demanda da municipalidade, só posso constatar que este Prefeito é um vagabundo, pilantra, e não merece nossa credibilidade”, onde o vereador estaria exercendo plenamente o seu direito de opinião e fala na tribuna da Casa Legislativa, amparado pela prerrogativa da imunidade parlamentar material absoluta.

 

 

Também poderia ser passível do entendimento de um possível excesso ou abuso de prerrogativas se o vereador utilizasse a tribuna para ofender a pessoa da Prefeita, não na condição de Chefe do Executivo Municipal, mas em sua vida civil ou particular, o que também não foi o caso, já que no próprio requerimento fica evidente que ela relaciona a conduta supostamente atípica ao que o vereador questionou, opinou e falou sobre a Prefeita na condição de Prefeita, e sobre atos do exercício do mandato de Chefe do Executivo Municipal, sendo que tais falas e opiniões, por mais que possam parecer ofensivas, são plenamente conexas com a atividade legislativa, portanto gozam de imunidade parlamentar, visto que a referida prerrogativa é aplicada exclusivamente neste tipo de situação, caso contrário, não seria sequer necessária a existência da imunidade parlamentar.

 

 

Logo, observado o § 2º do art. 357 do Regimento Interno da Câmara Municipal de Birigui/SP, combinado com o art. 29 da Constituição Federal, conclui-se que seria incompatível com o decoro parlamentar se acaso o vereador houvesse abusado das prerrogativas inerentes ao mandato, ou seja, se cometesse qualquer excesso, o que não aconteceu, já que o parlamentar usou apenas da imunidade parlamentar material absoluta para manifestar opiniões e palavras na tribuna da Casa Legislativa, no âmbito do município, não ultrapassando qualquer limite do pleno exercício de seu mandato.

 

 

Cabe a Prefeita entender e respeitar a opinião e fala do parlamentar, mesmo que não concorde ou não lhe agrade, demonstrando respeito ao instituto da imunidade parlamentar e, consequentemente, respeitando o livre exercício, independente e autônomo, do Poder Legislativo e as garantias institucionais dos Poderes da República.

 

 

Um requerimento desta natureza soa, para quem preza pelos valores e princípios republicanos, como tentativa arbitrária e abusiva da Chefe do Executivo Municipal em reprimir, coibir, tolher ou intimidar o vereador de exercer sua atividade dentro do parlamento de forma plena e irrestrita, gozando de seu direito legítimo de inviolabilidade como rege o art. 29 da Constituição Federal do Brasil e o art. 16 da Lei Orgânica Municipal de Birigui.

 

E por que não dizer que tal requerimento reflete no funcionamento regular da Câmara Municipal como um todo? Afinal, os demais vereadores podem se sentir intimidados com o requerimento da Prefeita de Birigui, que atenta contra a imunidade parlamentar do Vereador Tody, e, consequentemente, deixar de se expressar livremente na tribuna, deixando de exercer seus mandatos de maneira plena, o que impede o funcionamento regular da Câmara Municipal, infringindo o disposto no inciso I do art. 4º do Decreto-Lei nº 201/1967.

 

 

Seria possível considerar, ainda, este requerimento da Prefeita Municipal, a tentativa de cometer crime de responsabilidade contra a prerrogativa do vereador, visto que, conforme o item 3 do art. 6º da Lei nº 1079/1950 que trata dos crimes de responsabilidade, “são crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados: 3 – violar as imunidades asseguradas aos membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas dos Estados, da Câmara dos Vereadores do Distrito Federal e das Câmaras Municipais”.

 

 

Referências Bibliográficas:

 

Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

 

Lei Orgânica do Município de Birigui. Disponível em: https://www.birigui.sp.leg.br/leis/lei-organica-municipal.

 

Regimento Interno da Câmara Municipal de Birigui. Disponível em: https://www.birigui.sp.leg.br/leis/regimento-interno.

 

Lei nº 1079 de 10 de Abril de 1950 – Define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l1079.htm.

 

Decreto-Lei nº 201 de 27 de Fevereiro de 1967 – Dispõe sobre a responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0201.htm.

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