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O mundo vai acabar ou o mundo deve acabar?

Por Rafael Zago

 

De maneira bastante superficial, o espírita kardecista acredita, além da comunicação com os espíritos e na reencarnação, em uma transição de mundos conforme estes se modificam ao longo do tempo, evoluindo e adquirindo níveis e classificações superiores. Poderia soar diferente do darwinismo, por exemplo, que acredita que as espécies passam por uma seleção natural, sendo que alguns organismos se adaptam e criam vantagens sobre os outros no ambiente em que vivem, o que os permite sobreviver enquanto aqueles em desvantagens são extintos. Na teoria da evolução kardecista dos planetas, no entanto, toda a comunidade adquire essa vantagem e evolui junta, mesmo que cada indivíduo precise, durante o seu processo particular de evolução, de um tempo diferente para atingir sua transição pessoal.

 

A classificação dos mundos segundo o kardecismo varia de acordo com o nível de evolução de cada planeta,  sendo avaliados aspectos morais, intelectuais, sociais e espirituais de cada indivíduo e da sociedade onde estão inseridos. Mais uma vez, indicando distinção do darwinismo, que percebe a evolução apenas através de aspectos biológicos, orgânicos, químicos e físicos dos seres observados e de seu habitat. Poderíamos, até então, supor que o darwinismo e o kardecismo são completamente antagônicos, reforçando a ideia de que toda religião efetivamente se distancia da ciência.

 

Uma coisa, no entanto, conflui entre ambas teorias: a evolução. Mesmo que por aspectos distintos, em ambas as teorias os indivíduos e a comunidade onde estão inseridos evoluem. Essa transformação, no entanto, diverge entre as teorias no que tange a manifestação da vontade, já que o darwinismo acredita em um processo de seleção natural, enquanto o kardecismo indica que o indivíduo passa por um processo de transformação voluntária, se submetendo a desafios e expiações pessoais, experimentando emoções e sentimentos e, com isso, através de suas decisões, demonstra a sua evolução.

 

Desde que o ser humano passou a adquirir consciência, uma das perguntas mais intrigantes da humanidade tem sido “quando o mundo vai acabar?”, porém, ao observarmos as teorias darwinista e kardecista, em especial se tratando da “espécie” humana, aparenta mais plausível perguntarmo-nos “quando o mundo como o conhecemos irá acabar?”, já que, analisando historicamente, o mundo como conhecíamos desde o final do século XIX já acabou. Imigrações, descobertas, revoluções, avanços tecnológicos, políticos, sociais e a globalização transformaram o mundo significativamente nestes últimos dois séculos, consequentemente, “acabando” com o mundo que existia. Aliás, com o advento tecnológico somado às transformações de princípios morais, éticos e sociais do mundo atual, poderíamos afirmar que o mundo “acaba” atualmente bem mais rápido que antes.

 

O que acontece quando, nos dias de hoje, o indivíduo não adere à tecnologia ou quando desrespeita os atuais valores da sociedade contemporânea? Atualmente, até o acesso à informação e a comunicação se tornaram “escravos” da tecnologia, afinal, cada vez menos as pessoas escrevem cartas ou frequentam bibliotecas, se portarem um moderno aparelho de telefone celular. Mesmo os idosos cederam ao processo de “seleção natural” tecnológica. Já a “escravidão” propriamente dita, assim como o racismo, homofobia e qualquer tipo de preconceito de cunho étnico, religioso ou social, que antigamente pudesse ser tido como normal e feito parte do cotidiano do mundo que “acabou”, hoje são atos banalizados e, inclusive, criminalizados pela sociedade transformada e evoluída.

 

Trazendo um pouco de Darwin para o kardecismo, poderíamos dizer que os indivíduos que não se adaptam ao atual ambiente político, social, moral, intelectual e espiritual acabam “extintos” quando imersos neste novo mundo onde seus valores são ultrapassados e obsoletos, devendo reprimi-los para que não sofram qualquer tipo de sanção, já que o mundo atual não permite mais suas práticas. Um exemplo seria o indivíduo que, nos dias atuais, se posicione a favor da escravidão ou seja racista. Ele jamais poderia se manifestar a respeito ou praticar tais vontades, afinal, o mundo evoluiu, e com isso, mecanismos foram criados pela própria humanidade para “extinguir” este tipo de pensamento ou comportamento. Por mais que ainda restem indivíduo com referido pensamento ou posicionamento, estes não poderão emergir, logo, haverá um momento na vida terrena em que todas as pessoas com este tipo de pensamento irão morrer [biologicamente falando] e, com elas, este tipo de valor abominável pela humanidade.

 

E assim a evolução kardecista vai se aproximando da teoria darwinista: a transformação social com base na evolução dos aspectos morais, psicossociais e espirituais vai “eliminando” gradativamente os indivíduos que não se adaptam aos novos valores cultivados pela comunidade onde estão inseridos. Daí você deve estar se perguntando: “para onde vão esses espíritos que não se permitiram evoluir e morreram com seus pensamentos arcaicos, atrozes e preconceituosos?”. Diferentemente de Darwin, que indica a extinção definitiva aos seres que não se adaptaram ao ambiente, na doutrina espírita os espíritos, durante suas provas e expiações, têm a oportunidade de evoluir, e reencarnarão quantas vezes se fizerem necessárias até conquistarem melhor patamar espiritual: quando encarnados, os espíritos passam por essa experiência aplicada na prática da vivência e convivência; quando desencarnados, enquanto habitantes de colônias espirituais, o aprendizado é oferecido também na teoria.

 

Aos que comungam da doutrina espírita kardecista, o mundo que habitamos hoje é conhecido como mundo de provas e expiações. Este mundo é um estágio de evolução onde os espíritos enfrentam desafios e adversidades para corrigir erros do passado (expiar) e para aprender e se aprimorar (provas). As provas se resumem em desafios, obstáculos e testes que impulsionam a evolução do espírito rumo ao progresso, enquanto as expiações são consequências de erros cometidos nas vidas passadas que precisam ser corrigidos e expiados, imposições pelo uso equivocado do livre-arbítrio. Embora exista sofrimento no mundo de provas e expiação, é uma oportunidade de aperfeiçoamento e aprendizado do espírito, sendo que cada espírito escolhe o gênero das provas que enfrentará durante a programação de sua reencarnação. Neste tipo de mundo há o encontro de diversos espíritos com níveis evolutivos diferentes, incluindo espíritos mais avançados que vêm para ensinar e servir de exemplo, beneficiando espíritos de esferas inferiores. Assim que atingir condições de transição evolutiva, o próximo mundo experimentado pela humanidade seria o mundo de regeneração, onde deixa um mundo de sofrimento para um estado mais evoluído, com o predomínio do bem sobre o mal, mesmo ainda existindo desafios e expiações. Essa transição é vista como um processo gradual que envolve a melhoria moral e espiritual da humanidade, refletida em atos de caridade, justiça e progresso. 

 

Para os espíritas, assim como para qualquer cristão, é sabido que uma das premissas religiosas mais presente na evolução e cultivo de valores sociais é “amai ao próximo como a ti mesmo”. Isto posto, fica nítido que parte da proposta da transição planetária é justamente conduzir o homem para auxiliar na evolução do próprio homem, impondo tacitamente que uma comunidade – ou um planeta – assumirá a sua total transição quando todos os seus indivíduos evoluírem conjuntamente, sendo esse apoio mútuo parte do aprendizado evolutivo. Obviamente que, num planeta com mais de oito bilhões de indivíduos, a transição não seria postergada por conta de uma ínfima quantidade de espíritos que não se permitem evoluir, os quais seriam consequentemente encaminhados para planetas compatíveis com seus níveis evolutivos, para continuar sua jornada de transformação. Contudo, com o atual momento experimentado em nosso planeta, é ainda improvável dizer que estejamos prontos para usufruir de um mundo de regeneração, tampouco que já estejamos vivenciando este nível planetário. A única coisa certa que podemos dizer quanto a essa transição é que em determinado momento faremos.

 

E, neste momento, o kardecismo ultrapassa o darwinismo em seus limites enquanto teoria da evolução, afinal, enquanto Darwin deixa claro que o indivíduo que não se adapta ao ambiente simplesmente perece, no kardecismo nenhum indivíduo é deixado para trás durante o processo evolutivo planetário. Seja neste ou noutro planeta, o indivíduo será conduzido à evoluir, pois lhe serão dadas todas as oportunidades quanto forem necessárias para obter o sucesso evolutivo. Mesmo que o mundo por ele ocupado anteriormente “acabe”, o indivíduo será conduzido a um mundo de mesma esfera evolutiva para perseverar em sua reforma íntima, em sua formação moral e psicossocial, resignificando seu processo reencarnatório e capacitando-o para ocupar novas esferas e caminhar rumo ao progresso espiritual.

 

Assim como o planeta já tem praticamente erradicado, por exemplo, penas de morte ou torturas em praças públicas, punições absurdas e desproporcionais, o que era comum até o início do século passado, muitas são as mudanças que têm acontecido conforme acompanhamos a transição evolutiva de nosso planeta, que passa por constante reforma moral e espiritual, refletindo os efeitos desta evolução, individual e coletiva, num seio social mais seguro e harmonioso. É nítido que ainda há muito o que trabalhar neste sentido para que a transição ao mundo de regeneração se torne uma realidade, no entanto, sentindo os efeitos da transformação que o planeta sofreu nos últimos dois séculos, podemos nos orgulhar como humanidade ao olhar para trás e perceber que aquele mundo que vivemos e como vivemos “acabou” graças às nossas ações, escolhas e interesses enquanto comunidade.

 

O mundo acaba? Sim, já acabou e não foi uma só vez. E a expectativa é que sempre acabe, se reforme, se transmute e culmine em um mundo ainda melhor para os que aqui habitam e seus futuros habitantes. E que os indivíduos, agentes transformadores destes mundos, também se transformem, evoluam, se superem, se construam, permitindo “extinguir” suas versões inferiores do passado, levando para o túmulo dessas versões os valores que já não lhes servem mais. Neste encontro entre darwinismo e kardecismo, fica constatado que a ciência e a religião conseguem caminhar juntas sob o mesmo prisma, afinal, em ambas as teorias da evolução, o ambiente transiciona constantemente e quem não se adapta é superado. A distinção ocorre quando, para o kardecismo, não há os grilhões da matéria e superam-se os limites da razão. O espírito em sua plenitude é detentor de uma superioridade transcendental, ainda inexplicável pela ciência, indefinido pela razão, mas que detém toda a sensibilidade necessária para entender que, mesmo os que assim não acreditam, fazem parte desta grande festa evolutiva, precisam ser amparados e conduzidos pelos mesmos caminhos, pois somente assim atingiremos a maturidade espiritual necessária para vivermos e gozarmos de plena harmonia entre nossos semelhantes.

 

“De onde viemos?” ou “para onde vamos?” são perguntas que permeiam o campo da filosofia, “ciência” criada justamente para indagar a humanidade sobre questões que a própria ciência, em sua exatidão e racionalidade, não consegue responder pontualmente. E por não conseguir responder algumas questões, a ciência preferiu criar um ramo específico dentro de seu bojo para não dizer que está simplesmente trabalhando ao lado da fé, afinal, a filosofia nada mais é do que um campo do conhecimento que busca entender questões fundamentais sobre a existência, o conhecimento, os valores e a verdade através do raciocínio crítico e da análise lógica, porém, essa análise sempre se resume a fé do filósofo, ao que ele sente, acredita e observa. A mesma fé de quem crê em uma religião ou doutrina, em um Deus ou em espíritos. E todos, ao final, do crente ao ateu, concordam em uma coisa: mesmo não sabendo responder ‘de onde viemos’ ou ‘para onde vamos’, a esperança e resposta unânime é de que este mundo como o conhecemos precisa “acabar” e que, em seu lugar, caminhemos juntos para a construção de um mundo melhor.

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