Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Estado Laico ou Liberdade Religiosa: O episódio da Escola Pública em Araçatuba com o Vereador Pugina

Por Rafael Zago

Em Araçatuba, um evento na Escola Estadual “Maria do Carmo Lélis” que deveria abordar a temática “Setembro Amarelo”, aparentemente  se transformou num “sutil” evento religioso, com entoação de louvores, pregações, alunos chorando e um dos cantores impondo suas mãos sobre estudantes. Este evento contou com a presença de líderes religiosos e de João Pedro Trevisan Pugina (PL), vereador da cidade. O encontro, que deveria tratar sobre a prevenção do suicídio, se tornou alvo de investigação do Ministério Público de São Paulo (MPSP) por violação ao princípio do Estado Laico e risco de exposição de menores, amparado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), já que vídeos foram gravados durante o evento, e pouco se referiam à temática que em tese abordariam, sendo que a maior parte do conteúdo dos vídeos corresponde às manifestações religiosas denunciadas ao MPSP pelo Presidente do PSOL de Araçatuba, Matheus Lemes.

 

A própria Constituição Federal de 1988 traz em seu bojo acerca da inviolabilidade da liberdade à crença e livre exercício de cultos religiosos como direito individual pétreo elencado em seu artigo 5º, contudo, na mesma Carta Magna, ela estipula a vedação à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, no art. 19, de estabelecer cultos religiosos ou subvencioná-los. Isso significa que, assim como o Estado não pode proibir seus cidadãos de exercer sua liberdade de crença ou cultos religiosos, também não deve estabelecê-los ou subsidiá-los utilizando-se do aparato estatal.

 

A sociedade contemporânea assiste a pluralidade religiosa tanto quanto a política, logo, garantir a laicidade do Estado muitas das vezes se torna um exercício árduo e delicado, pois objetiva não tão somente a não imposição de uma religião pelo Estado ou a ninguém obstruir de professar sua crença, mas permitir que os cidadãos possam exercer suas crenças sem interferências, garantindo democraticamente espaço para que todas as religiões possam coexistir harmonicamente em âmbito nacional.

 

A liberdade religiosa no Brasil, no entanto, nunca foi um direito conquistado naturalmente, tendo em vista que, desde o período da colonização, os jesuítas que aqui chegavam impuseram a sua religião aos indígenas, ocasião em que muitas das religiões nativas foram extintas, dando espaço para uma homogeneização religiosa europeia e abrindo campo para o sincretismo religioso quando da imposição de sua religião aos povos originários e escravizados que, até então, cultuavam religiões de matriz africana, e passaram a incorporar elementos das diferentes tradições.

 

Heranças da coroa portuguesa, a religião e sua influência no poder político daquela época era algo comum do velho continente, e consequentemente foi assim que se estabeleceu no Brasil. A imposição do catolicismo pelo Império brasileiro, configurando forte vínculo da Igreja com o Estado, traduzia os benefícios que somente os católicos tinham junto ao governo, pois se temia que o não católico poderia enfraquecer os pilares da estrutura colonial desenvolvida em parceria com a religião.

 

Neste sentido, outras doutrinas eram tipificadas como crimes de heresia ou apostasia, sendo que as demais religiões até detinham liberdade restrita de crença, mas não de culto. Inicia-se então o processo de construção social da intolerância religiosa e da falta de racionalismo que até hoje são latentes em nosso país com relação às religiões de outras matrizes não-cristãs.

 

Cabe dizer que, atualmente, deturpa-se o conceito de intolerância religiosa quando, por exemplo, determinados membros de uma religião são responsabilizados por transgredir a laicidade do Estado e, sendo reprimidos ou punidos, acreditam serem vítimas de intolerância religiosa, como se a tentativa de se garantir a laicidade do Estado fosse uma espécie de intolerância à prática religiosa, o que seria ignorância afirmar. Seria o mesmo acreditar ser incorreto deter um cidadão por invasão à domicílio pois lhe tolheria o direito de ir e vir e permanecer, mesmo ele escolhendo permanecer no interior da propriedade alheia.

 

Não há o que se falar em intolerância religiosa quando uma determinada religião ultrapassa os limites dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, como é o caso da laicidade estatal. Neste sentido, seria o mesmo concordar que uma religião de matriz africana teria o direito de realizar seu culto, sem prévia autorização, no interior de uma igreja católica, ou que uma igreja possa transgredir as leis do Estado, abusando da produção sonora e perturbando o sossego alheio, o que sabemos não ser permitido. Cada cidadão tem o direito de exercer suas práticas religiosas e cultos, assim como o dever de respeitar o direito alheio.

 

Tratando-se do aparelho do Estado, há o dever institucional de não violar a sua laicidade (neutralidade), além de respeitar a diversidade religiosa da comunidade, garante a convivência no ambiente público e coletivo de membros de todas as religiões sem distinção. Diversas são as jurisprudências no sentido de assegurar a imparcialidade do Estado frente à pluralidade religiosa brasileira, e dentre elas, segue a ADI nº 5256/MS cuja relatora é a Min. Rosa Weber:

“2. A laicidade estatal, longe de impedir a relação do Estado com as religiões, impõe a observância, pelo Estado, do postulado da imparcialidade (ou neutralidade) frente à pluralidade de crenças e orientações religiosas e não religiosas da população brasileira. 3. Viola os princípios da isonomia, da liberdade religiosa e da laicidade estatal dispositivos legais que tornam obrigatória a manutenção de exemplares da Bíblia Sagrada nas unidades escolares da rede estadual de ensino e nos acervos das bibliotecas públicas, às custas dos cofres públicos.” ADI 5256/MS, Relatora Ministra ROSA WEBER, Tribunal Pleno, data de julgamento: 25/10/2021, publicado em 5/11/2021.

Observa-se que a proposta do princípio da laicidade não tem como finalidade transformar o Estado em um “Estado ateu”, ou afastá-lo das religiões, mas mantê-lo próximo de todas elas, indistinta e concomitantemente, sem privilegiar ou segregar qualquer doutrina ou seus membros de fé. A conquista da atual liberdade religiosa, acompanhada da segurança jurídica de que o Estado não elegerá qualquer religião como haste política, é instrumento garantidor e não repressor do livre exercício religioso.

 

Poderíamos ilustrar com o seguinte exemplo: supondo que um cidadão brasileiro, cuja religião seja de matriz africana, adentre em um Tribunal de Justiça ou de uma Câmara Municipal e, sobre o Juiz de Direito que irá julgá-lo, ou sobre os Vereadores que deveriam representar toda a população indistintamente e criar as leis que regerão a comunidade, há um enorme crucifixo pregado na parede. Pode ao cristão não parecer desconfortável, sabendo-se que a maioria dos cidadãos brasileiros é de religiões com matriz cristã, mas não lhe intimida por justamente não lhe incomodar, visto que se você é cristão, trata-se de um símbolo comum da sua religião.

 

No entanto, façamos uma inversão de valores, e imaginemos um cristão adentrando em qualquer repartição pública onde se ostenta, por exemplo, a imagem de Zé Pelintra, uma das mais importantes entidades de cultos afro-brasileiros, como a umbanda. O que você, cristão, sentiria?

 

Caso você, leitor, seja cristão, pergunto se concordaria em trabalhar numa repartição pública onde, no lugar do crucifixo, ostentassem imagens e símbolos de outras matrizes religiosas? Estar-se-ia à vontade em um tribunal de justiça onde, sobre o juiz, houvesse a imagem de Exú ou Iansã? É esta a primeira pergunta que deveria ser feita pelos cristãos que concordam com a violação da laicidade do Estado quando para privilegiar sua própria religiosidade. E, num segundo momento, pergunte-se também, caso seja cristão, se concordaria, por exemplo, que durante as aulas de seus filhos na escola pública, fossem entoados pontos de umbanda, lhes fosse falado sobre os Orixás, ensinado sobre o candomblé.

 

Provavelmente você não concordaria. E, talvez, pelos mesmos motivos que concorda com o desrespeito à laicidade do Estado: por falta de informação. Provavelmente o cristão, por desconhecer as religiões de outras matrizes, por não ter a mínima curiosidade em estudá-las, se mantém no preconceito e na ignorância, o que poderia ser facilmente sanado pelo Estado se as aulas de educação religiosa não se voltassem apenas às religiões de matriz cristã.

 

Fica bastante fácil para o cristão concordar com aulas de religião, rituais, práticas e manifestações religiosas em escolas, com emprego de simbolismo e canções, oração e exposições, desde que resumidas e reduzidas às religiões de matriz cristã. E, com isso, obrigar os membros das demais religiões a internalizar sua cultura e seus dogmas desde a infância, aprendendo sobre a páscoa, sobre o natal, festas juninas, entre tantas outras atividades de matriz cristã que as crianças são submetidas como parte do ensino do suposto Estado laico que é sutilmente violado todos os dias pelos cristãos.

 

E não preciso dizer que desconheço qualquer outra religião no Brasil que tente se impor fora de seu templo tanto quanto as religiões de matriz cristã, afinal, não conheço outra religião que utilize de instituições de ensino para pregar seus dogmas, ou mesmo que detenha uma bancada parlamentar no Congresso Nacional, priorizando mais a doutrinação e o poder político, se preocupando mais com a imposição de sua crença a qualquer custo, do que o exercício da própria fé.

 

Além da exposição das imagens das crianças e dos adolescentes durante a manifestação que assistimos na escola pública de Araçatuba, imagens estas que deveriam ser protegidas conforme reza o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em seu artigo 17, e cujo zelo deveria partir da própria instituição de ensino que acompanhava o evento, já que por as crianças estarem em horário de aula, estavam sob sua responsabilidade, outras garantias foram violadas, como a liberdade de crença e culto religioso elencada no artigo 16 do mesmo instrumento normativo.

 

Aliás, a criança e o adolescente, durante sua fase de formação cognitiva, tornam-se vulneráveis a todo e qualquer tipo de exposição, motivo pelo qual seria uma maneira de respeitar sua liberdade de escolha religiosa, assim como a liberdade religiosa de sua família, a Escola ser um ambiente neutro e acolhedor para todo e qualquer indivíduo. Isso não significa impedir, por exemplo, exposições ou palestras com eixos temáticos voltados à religiosidade, mas ampliar a exploração do tema envolvendo todas as religiosidades e matrizes, e ainda assegurar a participação facultativa àqueles que desejarem.

 

Contudo, é sabido o quão complexo seria, ante a estudar todas as religiões existentes, dividir espaço e tempo de estudos na grade curricular do ensino público para administrar atividades envolvendo todas elas a fim de não discriminar nenhuma. Por este motivo, o mais simples de o Estado eleger para satisfazer o princípio da laicidade é manter a religião dentro da escola apenas no interior de cada indivíduo, pois se cada um terá a sua, e a educação pública é para disciplinas coletivas, logo, não cabe ao Estado ensinar ou desenvolver qualquer atividade religiosa. Muito pelo contrário, cabe ao Estado ensinar justamente sobre o princípio da laicidade, fomentar a tolerância e impor o respeito.

 

Assim como não deveria existir “bancada evangélica” no Congresso Nacional, por exemplo, visto que, por se tratar de uma Casa de Leis que deveria representar todo o povo brasileiro, candidatos se utilizando da sua fé e de seus dogmas para se eleger e governar trata-se basicamente de impor suas crenças individuais em uma comunidade plural através de leis, o Estado deveria evitar expor as crianças e adolescente às experiências religiosas dentro de suas instituições públicas, objetivando o tratamento isonômico às religiões dentro das repartições públicas, fortalecendo a laicidade do Estado e garantindo a inviolabilidade dos direitos religiosos das crianças e dos adolescentes, em tempo de formação psicossocial, estabelecidos no ECA.

 

Por este motivo, independente de qual seja a sua religião, que não passa de uma escolha individual e personalíssima, o cidadão [mesmo o cristão, como sou] ter a certeza de que todas as religiões estão sujeitas e submissas aos deveres constitucionais e ao ordenamento jurídico vigente, reguladas pelo Estado, traduz em proteção à prática religiosa e de culto, limitando suas crenças e dogmas aos seus respectivos membros, estabelecendo limites entre cada religião para que coexistam em harmonia, respeito entre seus membros, bem como entre todas as religiões e a comunidade no geral, em especial, no interior de espaços públicos coletivos, como é o caso da Escola.

 

Referências Bibliográficas:

 

Constituição Federal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

 

Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm

 

“Liberdade de Religião” – Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/direito-constitucional/fundamentos-da-liberdade-de-religiao

Compartilhe em suas redes sociais: