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A megaoperação nas favelas do Rio: Onde Jesus Cristo estaria no morro?

por Rafael Zago

 

Na Bíblia Sagrada, em Lucas 23:39-43, enquanto Jesus estava crucificado ao lado de dois malfeitores, um deles dizia “se tu és o Cristo, salva-te a ti mesmo, e a nós”; já o outro a este repreendia, respondendo “tu nem ainda teme a Deus, estando na mesma condição? Nós, na verdade, com justiça, recebemos o que nossos feitos mereciam, mas este [referindo-se a Jesus] nenhum mal fez.” Este mesmo malfeitor disse à Jesus: “Senhor, lembra-te de mim, quando vieres em teu reino”. Jesus então lhe responde: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso.”

 

Essa conversa parece não fazer parte da mesma Bíblia Sagrada dos cristãos da atualidade. Aqueles cristãos que costumam proferir bravatas do tipo “bandido bom é bandido morto” e “está defendendo bandido? Leve-o para sua casa”. Cristãos que não percebem que o último gesto de amor fraternal de Jesus foi justamente acolher em seu reino criminosos condenados pelo poder da época, e ainda perdoar aqueles que lhe faziam o mal. Até porque seria muito simples amar apenas “o próximo” que também nos ama, com quem nos assemelhamos ou que nos convém, quando a verdadeira premissa do Evangelho deveria ser amar a todos indistintamente, mesmo diante de suas imperfeições.

 

No último dia 28/10, durante uma megaoperação da polícia nos morros do Alemão e Penha, na cidade do Rio de Janeiro, restaram mais de 120 mortos, sendo quatro deles policiais que atuavam na referida operação. Após a divulgação nos noticiários, as opiniões sobre a ação policial movimentaram e dividiram as redes sociais com diversas opiniões, tanto favoráveis quanto contrárias aos seus resultados; há os que defendam que a polícia deve agir com truculência para combater o crime organizado, independente dos efeitos colaterais que uma ação como esta pode causar à comunidade, bem como os que compartilham da ideia de que o Estado deve se planejar melhor e pautar suas ações no âmbito da inteligência para exercer seu poder de polícia. Para garantir ainda mais o apoio positivo da opinião pública sobre a operação, o Governo do Rio de Janeiro divulgou a lista de nomes dos mortos, utilizando histórico de anotações criminais e “fotos em redes sociais” para apontar possível ligação dos suspeitos com o Comando Vermelho (CV), mesmo que nenhum dos mortos estivesse na lista de alvos da referida operação, justificando as mortes por terem reagido à abordagem e confrontado com a polícia. Informou ainda o Governo do Rio de Janeiro que a faixa etária dos mortos na referida operação está entre 14 e 55 anos de idade.

 

É óbvio que a sociedade brasileira, carente de respostas efetivas do Estado quando o assunto é combater o crime organizado, se apoia no sentimento de indignação coletiva para endossar a atividade policial, mesmo que exercida com excesso, podendo atingir não só os alvos das operações policiais, mas de maneira colateral também a sociedade civil. Evidentemente que, principalmente para aqueles que não residem na periferia, que não dividem a mesma sensação de ocupar as margens da sociedade, onde a abordagem policial é exercida de maneira mais enérgica e autoritária, “vale tudo para combater o criminoso”. Vale até vidas inocentes.

 

É notório o interesse dos ditos “cristãos” em ocupar o poder político, em compor bancadas evangélicas nas Casas Legislativas de todo o país, mas fica a dúvida: quando é que o cristão irá vincular os preceitos do Cristo às ações do Estado? Quando é que enxergaremos os resultados da influência cristã no exercício do poder político ou refletida em políticas públicas voltadas à comunidade?

 

Temos uma sociedade fragilizada, e podemos concluir facilmente este quadro quando funcionários públicos, líderes religiosos ou filantropos, apenas pelo exercício padrão de suas funções ou realização de atividades comunitárias, se tornam uma espécie de ‘mártir’ para a sociedade, como quando uma policial à paisana atira em um bandido e, por este motivo, é eleita Deputada Estadual em São Paulo, ou quando um ex-juiz de direito é eleito Senador da República, bem como outros tantos aclamados candidatos à cargos políticos que, na verdade, estavam simplesmente realizando suas funções ou exercendo algum tipo de atividade de caráter social. Em nenhum destes perfis você encontra qualidade ou capacidade para o exercício da função pública, e desta maneira, vamos deturpando os Poderes da República, ocupando-os com pessoas que, por mais que possam ter boas intenções, estão completamente despreparadas para o exercício da função pública.

 

Cientes de que nossa sociedade tem um raso nível de percepção quanto a efetiva atuação do Estado, fica cada vez mais fácil a elite brasileira, classe dominante da política nacional, impor ações públicas lesivas aos setores menos favorecidos da população e, através de doutrinação massiva e manipulação da opinião pública, disfarçá-las como “prestação de serviço” e/ou “cumprimento do dever” Estatal e convencer a população disso. Disfarçam, por exemplo, a atividade truculenta da polícia na periferia ou a superlotação da população carcerária em “combate ao crime” e “proteção ao cidadão” quando, em muitos dos casos, os cidadãos acabam intimidados, desrespeitados e criminalizados pelo Estado em abordagens e prisões que denotam nítido preconceito racial, étnico e social.

 

Afinal, não faz sentido a atuação policial truculenta nas favelas, como suposta resposta ao confronto de bandidos contra policiais, enquanto dentro de bairros nobres, condomínios fechados, como no caso envolvendo o ex-deputado Roberto Jefferson, que atirou cerca de 50 vezes contra a polícia, atirou granadas, a atuação policial foi pacífica e complacente. Fica a questão: se o ex-deputado Roberto Jefferson fosse negro ou morasse na favela, a resposta policial seria a mesma? Ou quando o empresário Ivan Storel ofendeu policiais militares de dentro de sua mansão, no condomínio Alphaville, em São Paulo. Será que se Storel fosse negro e estivesse residindo na periferia, estaria vivo para se retratar com a corporação?

 

No ataque à democracia ocorrido em 08 de Janeiro de 2023, um segundo exemplo, a polícia conseguiu prender cerca de 1,4 mil criminosos que vandalizavam os prédios dos poderes em Brasília/DF e atentavam contra guarnições policiais, sem contabilizar sequer uma morte. Uma policial que atuou nesta ocasião declarou à CPMI que fora atacada pelos extremistas, que enfrentavam o pelotão da Polícia Militar na Praça dos Poderes com barras de ferros, usando os gradis da própria estrutura do local, estacas de pau, bem como disse que foi atingida por um coquetel molotov que falhou. A atuação policial seria a mesma se a intervenção fosse na favela, e os manifestantes fossem, em sua maioria, negros?

 

“Ah, mas apreenderam mais de 90 fuzis na favela”. É estranho usar este argumento para endossar matar mais de 120 indivíduos, afinal, a Polícia também conseguiu apreender quase 50 fuzis de uma única vez e sem disparar um único tiro, numa mansão em um condomínio de luxo na Barra da Tijuca, no ano de 2023, onde três homens foram presos em flagrante. Será que a abordagem seria a mesma se, ao invés disso, os quase cinquenta fuzis estivessem num barraco em uma favela no Complexo da Maré? Será que os indivíduos que estivessem armazenando essa quantidade de fuzis na favela teria o mesmo tratamento do Estado?

 

Casos como o 08 de Janeiro ou a abordagem policial à Roberto Jefferson só demonstram que o Estado possui, quando lhe convém, condições de enfrentar o crime – e criminosos – sem agir de maneira autoritária e truculenta, e ainda sim alcançar seus reais objetivos. Inclusive, ao criminoso preso é garantido o direito à ampla defesa e contraditório, além de ser mais fácil obter qualquer nova informação relevante para dar sequência às investigações com o criminoso ainda vivo, para que outros envolvidos também sejam encontrados, incriminados e assim o crime seja combatido efetivamente no bojo social. Ao executar um criminoso, com exceção das excludentes previstas no ordenamento jurídico nacional, o Estado lhe condena à morte sem direito à defesa, não satisfaz o interesse persecutório e não imputa nem executa a pena legalmente prevista. Ele rompe o objetivo do Estado Democrático de Direito e, nas ruas, sem um processo formal, julga e condena, em especial, o negro e o favelado.

 

Mas a questão levantada não é apenas o desprezo do Estado, em especial do Governo do Rio de Janeiro, aos direitos fundamentais e princípios constitucionais, quando uma operação policial resulta em mais de 120 mortos e sequer cumpre com seu objetivo principal. É a incoerência de se supor que, aqueles que se levantam em favor da lei, de seu estrito cumprimento e de suas garantias, estejam “em defesa do bandido”, até porque nenhuma ação policial que resultou na prisão de criminosos, desde que sem cometimento de excessos ou ilegalidades, fora alvo de críticas sociais, seja de uma ou outra lateralidade política.

 

Dizer que “a esquerda defende bandido” por cobrar investigações sobre supostos excessos cometidos na operação deflagrada nas favelas do Rio de Janeiro, ou quando se impõe respeito aos direitos humanos legitimados em dispositivos legais, soa leviano, afinal, se a referida operação policial, assim como qualquer outra atividade do Estado, se desenvolveu de forma plenamente legal, não há o que se preocupar quanto à possíveis apurações. Como diz o velho ditado: “quem não deve, não teme”. É até uma oportunidade de o Estado comprovar que atuou de maneira lícita e formal, dentro dos preceitos e garantias fundamentais previstos na lei. No caso, “defende bandido” quem justamente coíbe e prejudica esse tipo de apuração, como é o caso da direita brasileira, afinal, se houve algum excesso ou ilegalidade por parte de alguém, a direita, ao tentar cercear o processo de apuração, mantém impune aquele que infringiu a lei. Sem contar os recentes pedidos de anistia em favor de criminosos presos nos atos antidemocráticos de 08 de janeiro, pedido este que pode ser considerada explícita “defesa de bandidos”, visto que anistia é um instituto que só cabe a quem foi realmente condenado, logo, ao invés de considerá-los inocentes e pedir absolvição, estão convictos da natureza criminosa dos presos no referido ato, e por isso pedem anistia.

 

Mas, voltando ao início do texto, o que há de “ruim” em “defender bandido”? Estaria Jesus errado quando, na cruz do calvário, convida criminosos condenados para habitar o reino do céu? Estaria Jesus equivocado ao perdoar seus algozes? Seria Jesus “esquerdista” por isso? Aliás, Jesus sempre defendeu a aplicação justa dos direitos humanos. Sempre cobrou coerência, razoabilidade e proporcionalidade, por exemplo, na execução das penas da época, quando disse “atire a primeira pedra apenas quem não tiver pecado algum” (João 8:7), advogando por uma pecadora, independentemente do seu pecado ou da relação do pecado dela com os que lhe apedrejavam. Vale lembrar que a única vez em que Jesus age de maneira truculenta nas passagens bíblicas fora em desfavor dos comerciantes, quando chicoteou vendilhões que exploravam a fé alheia, nas portas do templo.

 

E nós, ditos cristãos? Será que não temos pecado algum, para “apedrejar” com tanto afinco os mortos nas favelas do Rio? Será que gozamos de moral intocada e caráter ilibado o suficiente para tripudiar nossa opinião sobre os corpos e declarar que “morreram porque mereceram” ou “deveria ter morrido mais”? Será que estamos praticando o verdadeiro cristianismo quando nos posicionamos em favor de uma ação que matou mais de 120 pessoas e não conseguiu sequer atingir seu objetivo principal? E mesmo que algum de nós ainda se ache no pleno direito de gargalhar sobre os 120 corpos, a primeira pergunta que deveríamos nos fazer como cristãos é qual o sentido de demonstrar satisfação pessoal com 120 mortes, sendo que destas não há nenhum preso, nenhum condenado, nenhum crime solucionado? E uma segunda pergunta seria o quão cristão isso soa? O quão próximo de Cristo está o indivíduo que apoia e comemora 120 mortos, independente de seus ‘pecados’?

 

Se “ser de esquerda” é defender a justa aplicação da lei e as suas garantias, apurar seus excessos e transgressões, acho que só criminoso não é de esquerda. O crime não respeita a lei ou garante os direitos humanos. O crime é inconsequente, irresponsável, não se importa com as vidas e com possíveis efeitos colaterais lesivos à comunidade. Quando pode, aplica inclusive pena de morte sem qualquer pudor ou ressentimento. Adianta combatermos todas essas características cruéis se, quando o Estado age de igual maneira, concordamos e exaltamos? Será que buscamos um Estado vingativo em detrimento de um Estado digno e justo que custamos construir? Será que, ao apoiar esse tipo de comportamento do Estado, promovemos o fim da criminalidade ou apenas uma “troca de bastão”?

 

“Ah, mas estes já fizeram muitas famílias sofrer, então, agora, chegou a vez da família deles!” ou “estes mataram muita gente, agora, não matam mais!” são as frases triviais com que muitos dos ditos cristãos justificam seus comportamentos e posicionamento sobre fatos desta natureza, e não é a primeira vez. Será que é um objetivo digno o indivíduo se igualar? Absorver o mesmo comportamento? Tornar-se aquilo que repudia?

 

Não há nada que me convença de que seja este o verdadeiro espírito cívico, tampouco cristão. E mesmo que tivéssemos moral suficiente para julgar e condenar os mais de 120 mortos no último dia 28, ou qualquer outro criminoso morto em operações policiais, a pergunta é: para quê? A quem, efetivamente, nossos discursos alcançam? Até porque as vítimas, principais destinatários, estão mortas. Se as vítimas estão mortas, quem seriam então os “alvos” da comemoração sobre os mortos?

 

O Estado? O mesmo Estado que não se preocupou nos efeitos colaterais que uma ação truculenta e mal planejada poderia resultar na favela, levando à morte quatro agentes da segurança pública, não cumprindo com o objetivo da operação, não retomando território ou diminuindo a criminalidade no local? A sociedade? A mesma sociedade que parece sedenta por sangue de gente pobre marginalizada, que adora ver um pobre morrer na favela e finge acreditar que uma operação que sequer cumpriu seu objetivo, tampouco acabou com o crime organizado ou retomou território ocupado pelo crime, restando apenas 120 corpos esparramados pela favela, poderia ser considerada um êxito? Outros criminosos? Os mesmos criminosos que pouco estão se importando com as baixas na referida operação, já que, para os verdadeiros “cabeças” do crime organizado, quem morreu no dia 28 não passava de números, de peões facilmente substituíveis no tabuleiro?

 

Sabe quem realmente recebe a ‘comemoração’ dos cristãos contentes com as mais de 120 mortes? As famílias enlutadas. Os cristãos, supostos defensores da família, são os primeiros a atacar a referida instituição que fingem defender. E qualquer um que compartilhe do mesmo sentimento de felicidade com as referidas mortes pode até justificar com o seguinte pensamento de que “não mandei ter filho, irmão, pai, primo, sobrinho bandido…”, mas acredito que ninguém pede para ter um filho, um pai, um irmão, primo ou sobrinho, bandido. Por que não vão aos velórios, no seio familiar do criminoso abatido pela polícia, tripudiar sobre os caixões? Ofender os criminosos mortos na presença de suas mães, filhos, esposas, parentes e amigos? Por que não ostentam esta coragem? Por que não vão nutrir este ódio de maneira menos hipócrita, os direcionando a quem realmente os imputam?

 

Será que conseguem imaginar a dor e o sofrimento de uma mãe ou de um pai, moradores da favela, que provavelmente tentaram o máximo para manter o filho fora do mundo do crime, mas ‘fracassaram’? Será que conseguem imaginar o quanto os pais da maioria destes mortos, ou eram pessoas instáveis e problemáticas, produzindo um ambiente familiar hostil e desfavorável que contribuiu para o ingresso no mundo do crime, ou então deram seu máximo para que seu filho recebesse uma boa educação, dentro de suas condições, mas infelizmente o mundo do crime foi ‘mais atraente’? Será que não conseguem imaginar a dor de uma família que perde alguém, não para o confronto policial, mas para o mundo do crime ou das drogas? Se até quem mora longe da favela não consegue, às vezes, evitar que o filho ingresse no mundo das drogas ou no crime, imagina quem habita este ambiente, que por si já é desfavorável e marginalizado pelo Estado?

 

“E quem vai falar das vítimas inocentes ou dos policiais…” – Todos. Todos sempre falamos das vítimas inocentes, todos sempre falamos dos policiais. A questão é: quando vamos começar a olhar indistintamente pelos nossos próximos? Quando vamos olhar também pelas famílias dos criminosos, que são igualmente inocentes e vítimas, mas geralmente marginalizadas nessa discussão? Tecer discurso com finalidade de priorizar quem já é privilegiado nesta seara é fácil e soaria, de certa maneira, mera promoção pessoal do locutor. Muitos já foram feitos. Vir aqui falar bem do policial que estava cumprindo seu dever seria fácil demais para mim, que divido a mesma profissão. Vir aqui falar bem das pessoas inocentes que foram vítimas da irresponsabilidade do Estado e da crueldade do crime organizado não seria uma novidade junto ao clamor social. Mas quando vamos colocar ao centro da discussão as famílias dos criminosos? Ou elas não merecem nossos olhares? Lembre-se: Falamos da família, instituição que muitos ‘enchem a boca’ para dizer que defendem, mas que, quando mais precisam de defesa, é a primeira a ser ignorada.

 

Ninguém “gosta” de morar na favela. Ninguém “ama” viver na periferia. Ninguém “luta” para se manter às margens. Nem sempre porque algum filho da favela pegou numa arma foi porque os pais ensinaram. Nem sempre quando um filho da favela é apresentado ao vício das drogas foi no seio familiar. Assim como em qualquer outro canto deste país. Mas, é óbvio que o ambiente periférico é mais propício. É óbvio que, para os pais que residem na favela, exige-se desprendimento de um esforço maior. E, pior, sem a assistência ou alcance do Estado, que só ingressa na favela para matar e saciar a vontade da elite de ver o pobre sendo morto, provocando uma pseudo sensação de segurança pública que não existe, afinal, por mais que a polícia mate incontáveis moradores da favela, criminosos ou não, a favela nunca se tornou um lugar melhor para se viver.

 

A família do criminoso já sofre o suficiente ao ter que conviver com os prejuízos que ele lhes causa durante toda uma vida, afinal, só quem tem um viciado ou um traficante na família sabe o quão difícil é o convívio cotidiano. Dizer que “agora a família do bandido vai sofrer o mesmo que o bandido já provocou em outras famílias” é ledo engano de quem vive no conforto de sua bolha social e desconhece a verdadeira realidade de quem tem na família um criminoso, viciado ou traficante.

 

Nenhuma mãe e nenhum pai almeja um futuro no crime para seus filhos. Nenhum familiar sonha com isso, ou aceita o ingresso de um membro no crime de maneira natural. Logo, quando uma mãe está chorando sobre o corpo de um filho que morreu em confronto com a polícia, ela não está “surpresa”, afinal, ela sempre soube, mesmo que não aceitando facilmente, que aquele poderia ser o fim de seu filho. Inclusive, muitas mães reconhecem que não perdem seus filhos apenas no dia em que eles morrem baleado, seja pela polícia ou pelo próprio crime organizado, mas desde que ingressam na vida criminosa. Porém, mãe é mãe, com eterno sentimento de mãe, nutrindo que um dia, quem sabe, poderá recuperar seu filho de volta à vida digna e civilizada. Algumas criam esperanças, lutam diariamente para mostrar aos filhos melhores caminhos; outras já sem expectativas sobre seus filhos, apenas aguardam a notícia de sua morte e até se confortam com isso.

 

Não adianta chegar numa mãe, depois de seu filho morto, afundar-lhe o dedo no rosto durante seu luto e dizer que “seu filho mereceu”, afinal, muitas dessas mães também pensam exatamente igual. Diante deste momento de dor, é importante lembrar que ali há uma mãe. O criminoso é apenas um corpo sobre o qual essa mãe chora, independente de quantas famílias, além da própria, ele destruiu. Declarar condolências à essas 120 famílias, se solidarizar com o sofrimento destas mais de 120 mães, não é automaticamente defender o criminoso ou o crime. É ser humano e ser cristão.

 

Inclusive, onde é que estavam todas essas pessoas que “se indignam com o crime organizado” e “comemoram 120 mortos em confronto com a polícia” antes dos 120 criminosos se tornarem criminosos? Onde o Estado estava antes de abatê-los? Onde estavam aqueles que hoje se alegram por suas mortes, antes de precisar matá-los?

 

A elite dominante controla tão bem a política e a opinião pública que conseguiu fazer com que o pobre odiasse tanto a própria classe social a ponto de criminalizar o aborto, mesmo cientes de que muitas crianças nasceriam em lares instáveis e em comunidades colapsadas, não teriam um crescimento e desenvolvimento psicossocial adequado, enquanto os ricos pudessem viver uma vida sexual desregrada e utilizar das clínicas clandestinas para sacrificar seus filhos bastardos e indesejados; a ponto de fazer o pobre rejeitar políticas públicas de assistência social, discriminando beneficiários de programas de governo com propostas assistencialistas e inclusivas, enquanto os ricos ‘mamam’ no Estado e gozam de diversos benefícios e regalias com dinheiro público; a ponto de fazer o pobre pejorar a Universidade Pública, enquanto ela vive lotada de ricos que recebem dela o ensino mais qualificado do país para continuar oprimindo e subestimando o pobre; a ponto de fazer o pobre criticar e vilipendiar os próprios direitos trabalhistas, enquanto os ricos exploram a sua mão-de-obra da maneira mais criminosa e infame para ficar cada vez mais ricos; a ponto de fazer o pobre odiar o debate político, enquanto os ricos o fazem em jantares de finais de semana e decidem o futuro da nação; a ponto de fazer o pobre odiar cada vez mais o pobre, a ponto dele se esforçar ao máximo para ter o mínimo de qualidade de vida que lhe é permitido, seja como empreendedor, num país economicamente hostil, para explorar a mão-de-obra da própria classe, ou então, ocupando um cargo público, como na Secretaria de Segurança, para caçar seus semelhantes de forma tão canalha a ponto de, em algum momento, se esquecer de que também é pobre e se orgulhar de caçar os seus, enquanto o rico, de um lado, financia o crime organizado e, do outro, alimenta a hostilidade estatal contra o pobre, pois “ganha dos dois lados” e sabe que, nas duas pontas, estão pobres matando pobres para a diversão do próprio pobre nos programas sensacionalistas da TV aberta. Enquanto isso, os ricos se unem, se protegem, brindam seu champanhe, se embriagam com whisky caro e, vez ou outra, atropelam algum pobre por aí com seus carros importados, seja com ou sem uma garota de programa no colo, pois sabem que, além do pobre defender que não podem ser taxados, ainda dão manutenção ao sistema que lhes mantém seguros e impunes.

 

O pobre, que se apega à religião para tentar se aproximar de um Deus com a intenção de vislumbrar um pouco de suporte emocional, amparo, proteção e justiça, acabou embriagado pelo sistema criado pelos ricos para transformá-lo no próprio Satanás que precisa combater. O pobre se convenceu de que precisa odiar o pobre para “parecer” rico, já que é a única coisa que consegue copiar do rico sem precisar pagar por isso. Até porque o mundo do rico é atraente e seduz. Não é a toa que os programas televisivos de domingo estavam acostumados a mostrar como são as mansões dos milionários, como são suas rotinas diárias, além dos famosos “reality show” onde o pobre se humilha para tentar ganhar dinheiro, e não poderia ser transmitido nas segundas-feiras, pois o pobre precisa trabalhar e não teria tempo para ser ludibriado pela mídia pois é a vez de ser enganado pelo próprio patrão, que lucra incansavelmente sobre seu suor, de quem recebe um salário de fome e quem lhe faz acreditar que a culpa de todos os males sociais é do governo.

 

Frustrados por trabalhar basicamente em regime análogo à escravidão, os pobres e marginalizados, cientes que jamais irão viver a vida do rico, consumir o mesmo que o rico, como prega a televisão, se rendem ao discurso da doutrinação capitalista, que lhe ‘consome o juízo’, o estopim para que se entreguem à caminhos sórdidos, porém mais fáceis de obter retorno financeiro imediato maior que trabalhando para os donos dos meios de produção, “vendendo” a sua própria dignidade para o mundo do crime com a esperança de conquistar a vida próspera que o rico vive anunciando na TV. Cansados de assistir suas mães sofrendo com a vida na favela, suas famílias passando por necessidades básicas, enquanto confrontam diuturnamente com discursos em que são taxados de “vagabundos” por procurarem ajuda do governo ou “acomodados” já que, segundo a meritocracia pregada pelo modelo liberal, “estão morando na favela porque querem”, isso quando não são comparados à criminosos, tendo oportunidades cerceadas, portas fechadas por puro preconceito arraigado no seio social, com todos estes empecilhos, não lhes restam outra alternativa se não se render ao crime.

 

E onde estávamos? Onde o Estado estava? Quando o indivíduo percebe que as poucas oportunidades ditas “dignas” de trabalho são insuficientes para se viver minimamente com dignidade? Quando o crime consegue “pagar” melhor o esforço do cidadão do que a promissora iniciativa privada? Onde estávamos quando esta mãe estava sofrendo para educar seu filho e mostrar para ele um caminho melhor enquanto era menosprezada pelo Estado e pela sociedade? Estávamos lhes negando cotas nas universidades ou no serviço público, lhes privando de estudar e trabalhar, lhes negando recursos, auxílios e benefícios, criticando programas sociais e de inclusão, estávamos ‘pintando um alvo em suas testas’ para que a polícia pudesse lhes acertar em cheio para comemorarmos no final do mês, enquanto aguardamos nossos salários caírem no próximo quinto dia útil. Era exatamente onde estávamos.

 

Criamos o criminoso que estamos acostumados a matar. Criamos a elite que estamos acostumados a sustentar. Criamos as mães que estamos acostumando a chorar. Criamos este ambiente doentio e patético com o qual fingimos nunca nos acostumar na frente das câmeras, nos discursos baratos nas portas de bares ou bancos de igreja, mas que já estamos muito bem acomodados, tanto que conseguimos almoçar tranquilamente assistindo os principais telejornais sanguinários que refletem nosso cotidiano violento como se nada estivesse acontecendo. Permitimos que os nossos semelhantes cavem suas próprias covas bem do nosso lado, e enquanto isso, assistimos sem prestar qualquer ajuda, pois a nossa responsabilidade se resume, segundo alguns, em esperar a polícia matá-los. E, depois, tripudiar sobre suas mortes enquanto assistimos suas mães chorando sobre seus corpos.

 

Ao final, o crime venceu mais uma vez. O crime venceu quando 120 pessoas morreram no morro e no dia seguinte tudo voltou a ser como era. O crime venceu quando todas as 120 pessoas que morreram no morro não eram nenhuma das que ficaram milionárias com o tráfico de drogas e de armas, não faziam parte da elite dominante deste país, não eram os verdadeiros financiadores do crime organizado. O crime venceu quando o povo ficou do lado da morte, e contra a própria espécie. O crime venceu quando a sociedade preferiu ofender 120 mortos ao invés de acolher 120 famílias e secar as lágrimas de 120 mães. O crime venceu porque o ser humano, que se diz cristão, agiu exatamente como o malfeitor que blasfemava ao lado de Jesus, e não como o próprio Cristo.

 

E a sociedade, diferente da elite, se divide. É o caminho para a manipulação da massa: dividir para conquistar. Doutrinar para convencer. Hoje o Brasil se divide entre os que manifestam seus pesares às 120 famílias das vítimas, indistintamente, afinal toda família merece nosso conforto num momento de dor, e aqueles que tripudiam e gargalham sobre 120 cadáveres. E será a escolha de em qual lado você está que irá determinar se você ainda é um ser humano sensível e vivo ou se já está tão morto [por dentro] quanto os 120 mortos na megaoperação do Rio.

 

Talvez, quando o ser humano enxergar e compreender que o ambiente social em que vivemos é responsável por criar nossos próprios demônios, e que todas as nossas decisões, inclusive nossa inércia, influi sobre o mundo, nos tornando igualmente responsáveis por nossos semelhantes, estejamos prontos para respeitar com mais afinco os preceitos do Cristo e mais dispostos à seguir os verdadeiros ensinamentos de Deus, afinal, Ele manda: “Amai-vos uns aos outros como vos amei, e ao próximo como a si mesmo. E assim me conhecerão” (João 13:34-35). Quem sabe a partir daí, ao invés de dizer “quem está defendendo bandido que o leve para casa”, os verdadeiros cristãos um dia respondam como Jesus: “Na casa de meu Pai há muitas moradas” (João 14:2).

 

Aos ditos cristãos que insistem em inflamar ódio nas redes sociais, cultuar a violência, enaltecer mortes de qualquer natureza, deturpar o ordenamento jurídico, prejudicar os direitos e garantias fundamentais e desrespeitar o luto das famílias, resta-nos parafrasear o que um “defensor de bandido” disse na cruz do calvário: Pai, perdoai-vos, pois não sabem o que dizem.

 

Fontes consultadas:

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COELHO, A.; GOMES, M. “Roberto Jefferson confessa que atirou cerca de 50 vezes e jogou granadas contra policiais, mas não teve intenção de matá-los”. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/sul-do-rio-costa-verde/noticia/2023/05/26/em-depoimento-roberto-jefferson-diz-que-nao-teve-intencao-de-matar-policiais-e-mudou-direcao-dos-tiros.ghtml – G1 RJ. 26/05/2023. Acesso em: 04/11/2025.

TUROLLO JR., R. “8 de Janeiro: dos mais de 1,4 mil presos, 141 continuam na cadeia e 44 estão em prisão domiciliar”. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/08/13/8-de-janeiro-dos-mais-de-14-mil-presos-141-continuam-na-cadeia-e-44-estao-em-prisao-domiciliar.ghtml. – G1 BRASÍLIA. 13/08/2025. Acesso em: 04/11/2025.

AGÊNCIA SENADO. “Policial diz que jamais presenciou tanta agressividade como no 8 de janeiro”. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/09/12/policial-diz-que-jamais-presenciou-tanta-agressividade-como-no-8-de-janeiro – SENADO. 12/09/2023. Acesso em: 04/11/2025.

MOURA, B. F. “Polícia Federal apreende 47 fuzis em mansão no Rio”. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-10/policia-federal-apreende-47-fuzis-em-mansao-no-rio – AGÊNCIA BRASIL. 11/10/2023. Acesso em: 04/11/2025.

TOMAZ, K. “Morador de condomínio de luxo de SP grava vídeo e pede ‘perdão à corporação’ por ter dito que ganha R$ 300 mil e xingar PMs de ‘lixo’.” Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/03/morador-de-condominio-de-luxo-de-sp-grava-video-e-pede-perdao-a-corporacao-por-ter-dito-que-ganha-r-300-mil-e-xingar-pms-de-lixo.ghtml – G1 SP. 03/06/2020. Acesso em: 04/11/2025.

Fonte Imagem: “8/16 – Devotos cristãos reencenam a Via-Sacra durante uma procissão da Sexta-Feira Santa na favela de Kibera, em Nairóbi, no Quênia – 19/04/2019 (Brian Otieno/AFP)” Disponível em: https://veja.abril.com.br/galeria-fotos/fotos-cristaos-recordam-a-paixao-de-cristo/ – Acesso em: 04/11/2025.

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