Por Rafael Zago
Em tempos onde se taxa o atual governo de “ditatorial”, imputando equivocadamente ao Executivo Federal os atos ou efeitos de decisões do sistema judiciário, ou insinuando sua influência, termos como “democracia” e “ditadura” passaram a fazer parte de forma ainda mais intensa do vocabuário cotidiano popular. Antes de iniciarmos nossa reflexão, porém, sobre o conceito de cada uma destas palavras tão famosas na atual conjuntura política, é importante destacar que ainda vivemos em um Estado cuja forma se rege sob o modelo republicano, onde os poderes legislativo, executivo e judiciário são autônomos e independentes, mesmo que harmônicos entre si, portanto, não nos cabe criticar um com base noutro, e vice-versa. Seria importante, também, revisar alguns conceitos para não confundir sistemas de Governo com formas de Governo ou de Estado, bem como modelos de gestão econômica de uma nação, afinal, quando falamos em “democracia” ou “ditadura” não estamos nos referindo concomitantemente a “comunismo” ou “capitalismo”, “federalismo” ou “estado uno”, “monarquia” ou “república”.
Ditadura, de maneira rasa, é a forma de governo que tem como preceito fundamental o autoritarismo e o totalitarismo do líder – ou dos membros – do governo, bem como o poder é centralizado, geralmente, em poucas “mãos”, reduzindo e filtrando a abrangência de tomadas de decisões. Neste caso, não há participação popular na gestão do Estado, não há mandatos temporários, não há representação popular, não há eleições, geralmente não há responsabilização dos atos do gestor do Estado, não há espaço para oposição no governo e qualquer debate sobre os atos e efeitos da gestão pública. Toda mídia é restrita ou censurada, objetivando apenas veicular material pró-governo. Cidadãos são coibidos e proibidos do livre exercício e manifestação do pensamento, sob pena de sanção estatal arbitrária por atos de subversão, com fito em evitar qualquer tipo de movimento ou mobilização contra os atos do governo. Obviamente que, com a adoção de um regime ditatorial, podem surgir reflexos nos demais setores que não exclusivamente na gestão do Estado, como a administração parcial da justiça, denegação de direitos humanos, padronização de costumes, controle e opressão social. No entanto, é importante destacar que os elementos que compõem o conceito de ditadura precisam estar presentes de maneira simultânea na gestão do Estado. Uma nação que manifesta apenas alguns dos elementos de uma ditadura, de maneira esparsa, não poderia ser de imediato considerada ditatorial. É o caso, por exemplo, da monarquia, que mesmo compartilhando algumas destas características, não se classifica no referido regime. Num regime ditatorial geralmente o líder ou membros do governo pouco se importam com o reflexo popular de suas ações, já que não precisam do endosso social para agir, visto que geralmente exercem o poder através do abuso da força militar.
Durante um Regime Democrático temos basicamente o oposto. O governo goza de participação popular, o líder – ou membros – do governo geralmente são eleitos para mandatos temporários, através do sufrágio universal, com eleições periódicas, elegendo representantes emergentes do próprio povo, os quais, assumindo cargo eletivo, poderão ser responsabilizados pelos seus atos durante a gestão. Um poder mais descentralizado, com divisões e camadas, delegação de funções, permitindo maior aderência e adesão popular na gestão da coisa pública. Em um regime democrático a imprensa e a expressão popular são livres, assim como a atuação da oposição política. Há pluralidade de ideias, de partidos, de opiniões. Desta forma, também há o reflexo em outros setores sociais, como a instituição do Estado Democrático de Direito, da livre manifestação do pensamento, da liberdade nos costumes e opinião pública. Há possibilidade de o povo manifestar sua indignação e frustração em relação aos atos de seu(s) representante(s), com movimentos e mobilizações públicas, bem como de puni-los ao rigor da lei quando necessário, inclusive culminando em alguns casos com a extinção e perda do mandato. No regime democrático, o governo tende a tomar decisões atendendo os anseios populares, visto que geralmente dependem da aprovação e do voto do povo vislumbrando a permanência no poder.
Respeitados os conceitos básicos de “ditadura” e “democracia” expostos, fica agora muito mais simples observar, dentro da conjuntura atual, o quanto estão sendo deturpados para manipulação da opinião pública. Se no atual governo os mandatários de cargos eletivos se submeteram a uma eleição, podem ser responsabilizados pelos seus atos, são obrigados a conviver pacificamente com a oposição política no Parlamento, recebem críticas da imprensa e o cidadão tem a liberdade de expressar sua insatisfação, não há o que se falar em ditadura nos dias atuais. Ditadura seria, por exemplo, caso se repetisse o golpe de Estado como em 31 de Março de 1.964, quando militares tomaram à força o poder no Palácio do Guanabara, destituindo João Goulart, Presidente eleito da época, dissolvendo o Congresso Nacional, prendendo ou exilando a oposição parlamentar, impondo medidas arbitrárias junto à sociedade [sendo a mais conhecida e rigorosa o Ato Institucional nº 05 – AI 5], censurando a imprensa e reprimindo a opinião pública.
Seria ignorância ou desonestidade intelectual tentar imputar a todo o Estado Brasileiro a classificação ‘ditadura’ apenas, por exemplo, pela atuação do poder judiciário. Se há um ex-Presidente da República respondendo um processo jurídico, assim como qualquer cidadão deste país que se submete ao ordenamento jurídico nacional, respeitando e garantindo sua ampla defesa e contraditório, elementos fundamentais do Estado Democrático de Direito, por mais que concordemos ou não com os efeitos deste julgamento, estamos ainda sob um regime democrático. A expressão “ditadura do judiciário”, de certa maneira, é ignóbil neste momento, visto que o sistema judiciário não está atuando de maneira arbitrária e parcial com relação ao ex-Presidente, afinal, qualquer mínimo indício de desrespeito poderia levar a defesa a argüir sobre e, inclusive, levar o caso ao Tribunal Penal Internacional (TPI), já que nosso país assina e ratifica o Estatuto de Roma, e tal tratado integra a legislação brasileira. Seria desqualificar, descredibilizar, desconfiar e desacreditar da competência dos advogados e dos correligionários do ex-Presidente acreditar que ele se submeteria a tamanha agressão institucional e manter-se-ia passivo e inerte.
Por este motivo, por mais que aliados e apoiadores do ex-Presidente possam desaprovar a atuação do judiciário, não concordar ou não se afeiçoar com determinado juiz ou sentença [assim como a maioria dos familiares de cidadãos condenados e presos deste país], uma decisão jurídica não tem como objetivo ser popular, mas legal. Politizar a atuação do judiciário e manipular, de maneira tendenciosa e equivocada, a opinião pública, deturpando conceitos, a fim de persuadir a massa contra as instituições da República, em especial o Poder Judiciário, aliás, é um tanto quanto perigoso, já que afeta diretamente a plena administração da justiça e das garantias dos direitos humanos, conduzindo o país para um possível regime de exceção, onde sentenças perderiam o caráter legal e sua aplicação de maneira isonômica, com incontáveis prejuízos, afetando principalmente as classes mais sensíveis da população.
Aceitemos, pois, que por mais que não gostemos de alguns aspectos da democracia, devemos considerar que nem a “melhor das ditaduras” supera, em qualidade social, a “pior das democracias”. Se nas suas redes sociais, ou durante as festas em família, em bares e supermercados, em público ou particular, você ainda exprime sua insatisfação contra o atual governo – inclusive contra a atuação do poder judiciário – de maneira livre e plena, agradeça ao regime democrático, pois é ele quem o permite. Ditadura é um conceito muito maior do que o que estão tentando forjar em torno da insatisfação com o procedimento jurídico ao qual o ex-Presidente está submetido. Tentam criar conceitos paralelos para os termos “democracia” e “ditadura” apenas com a finalidade de satisfazer interesses escusos, tendenciosos, particulares, manipular a opinião pública, desviar o foco dos crimes apurados e obstruir a atuação da justiça. Se estivéssemos sob um regime de exceção, sob um regime ditatorial, o ex-Presidente sequer teria a chance de constituir advogado, de ser processado, de se defender. Se estivéssemos sob um regime ditatorial, talvez o julgamento do ex-Presidente seria sob as mãos do Coronel Brilhante Ustra, sendo torturado ao invés de interrogado. Se estivéssemos sob um regime ditatorial, talvez nem saberíamos onde estaria, de fato, o ex-Presidente, assim como não sabemos até hoje onde está o ex-Deputado Rubens Paiva. Ao menos durante o regime democrático, o ex-Presidente, do conforto de seu lar, ainda pode dizer aos seus familiares, amigos e apoiadores: “Ainda estou aqui”.